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Versão em alemão de “Minha Luta” (“Mein Kampf”), de Adolf Hitler
Em janeiro de 2016 o livro “Minha Luta”, de Adolf Hitler, entrou em domínio público internacional. Proibido até aqui pelo detentor dos direitos (o estado alemão da Baviera), agora não é preciso autorização para publicá-lo. No Brasil, estão anunciadas duas edições comerciais.
O UOL convidou escritores para debater a pertinência ou não de se reeditar a obra, considerada “a bíblia do nazismo”: Ricardo Lísias, que você pode ler neste outro artigo, critica a publicação. Miguel Sanches Neto, cujos argumentos você lê abaixo, é a favor da publicação:
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Nenhum livro em toda a história editorial da civilização causou em tão pouco tempo tanto mal como “Minha Luta” (“Mein Kampf”, no original, de 1925), essa bíblia do nacional-socialismo que serviu para estimular a perseguição racial e uma ilusão de superioridade.
Como símbolo de seu poder proliferador, a obra de Hitler era o presente mais comum nos casamentos entre nazistas, forjando uma aliança em torno de um delírio segregacionista. Não se sabe qual o índice de leitura desse panfleto pançudo e monótono, mas o simples fato de possuir um exemplar dava ao militante a sensação de pertencer a um movimento que se via como vanguarda.
Este poder simbólico do objeto atendia ao mecanismo publicitário do III Reich, e estava dentro de suas estratégias de marketing, reforçando a mensagem de revistas, insígnias, uniformes, transmissões radiofônicas etc. Era o coração deste organismo de comunicação massiva, que bombardeava diuturnamente a população teutônica, dentro e fora da Alemanha, e seus simpatizantes.
Hitler foi o primeiro líder que se valeu de maneira despudorada da promoção midiática de sua imagem, numa campanha que o tornava onipresente mesmo nas regiões mais distantes. Assim, a posse de um exemplar de “Minha Luta” era muito mais do que a posse de um livro. Metonimicamente, era ter em casa o próprio führer.
O coração de uma ideologia
O que este livro representava às vítimas do nazismo em particular e à humanidade como um todo fez com que ele fosse retirado do mercado na Alemanha enquanto os seus direitos autorais estavam vigentes. Era um sinal de respeito a todos os mortos, feridos e traumatizados pela mais horrorosa ideologia nascida numa época industrial, o que permitiu que a perseguição a judeus e outras minorias ganhasse uma escala assustadora.
Barrava-se a continuidade editorial do livro mas não a sua circulação, pois há cópias em sebos, bibliotecas – tanto públicas como particulares – e principalmente cópias digitais, que se multiplicam rapidamente e de forma clandestina, dando munição a argumentos racistas e aquecendo os ânimos de facções cegadas pela intolerância.
O mesmo efeito que ele causou quando era, na Alemanha, o centro de um poderio bélico se manifesta ainda hoje, quando a admiração que alguns lhe rendem não pode ser assumida abertamente. É, portanto, um objeto perigoso, tendo funcionado como gatilho de um genocídio. Por tudo isso, não pode ser tratado como um título qualquer.
“Minha Luta” deve ser publicado comercialmente porque é pilar da democracia o acesso universal a todos os conteúdos, porque a proibição cria uma atração nociva e porque este livro se converteu numa peça de acusação contra os próprios nazistas
Hitler no Brasil
Em um romance de história alternativa, “A Segunda Pátria” (Intrínseca, 2015), transportei Hitler para o Brasil como personagem de ficção, com o intuito de destacar, pela emoção artística, os riscos permanentes de toda e qualquer forma de pensamento único. Em minha narrativa, Getúlio Vargas assina um acordo secreto com o III Reich, que passa a ter um braço no Brasil, perseguindo aqueles que entre nós são os grupos socialmente mais frágeis: indígenas e afrodescendentes.
Assim sendo, não posso deixar de defender a publicação hoje de “Minha Luta” com o mesmo sentido de alerta que moveu a escrita de meu romance.
Há também princípios fundamentais para este posicionamento. Primeiro, pela defesa do direito de informação que todos têm sobre qualquer assunto. Uma sociedade começa proibindo um livro consensualmente maléfico e logo estará banindo outras obras. Ler e refletir sobre temas tabus (de ordem sexual, social, científica, religiosa etc.) é uma das garantias da plena democracia. Embora óbvio, precisamos reafirmar permanentemente esse direito.
Outra questão para mim relevante é de ordem prática. Interromper a sua vida editorial não vai impedir, principalmente em tempos de internet, que o livro chegue às pessoas. E que chegue com uma aura de coisa proibida, o que é mais preocupante ainda, pois sabemos que a interdição cria ambiente propício para culto, já que possuir uma obra que não pode ser encontrada no mercado fortalece a relação de cumplicidade entre a pessoa e o objeto (mesmo que este seja digital).
Outro fato que ajudou a formar meu posicionamento é que “Minha Luta” tem um caráter denunciante das barbaridades cometidas pelos nazistas. Funciona como memorial das atrocidades que não devem ser esquecidas ou minimizadas, pois muitas afirmações dessa obra, lidas hoje de forma contextualizada, funcionam como prova de uma insanidade coletiva.
Dizendo de outra forma, e sinteticamente, “Minha Luta” deve ser publicado comercialmente porque é pilar da democracia o acesso universal a todos os conteúdos, porque a proibição cria uma atração nociva e porque este livro se converteu numa peça de acusação contra os próprios nazistas.
Na sua capa, deve ficar dito que a reprodução de seus disparates está sujeita à punição judicial
Modos de usar
Isso não significa que a sua edição possa ser feita inocentemente. Em relação ao conteúdo desse libelo, e em respeito histórico a tudo que ele simboliza, o editor é obrigado a se posicionar. A mesma defesa do acesso ao livro vale para o direito que todo leitor tem de saber a natureza terrível de tais ideias. Por mais que estejamos informados – principalmente pelo cinema – sobre o câncer que é a ideologia názi, isso precisa ser dito preventivamente ao leitor, explicitando os modos de uso da obra.
Não me refiro aqui apenas às edições críticas que algumas editoras estão providenciando. Elas são importantes para compreensão do livro, para desarmar as suas teses e situá-lo no fluxo histórico. Mas desconfio do seu alcance em relação ao leitor comum, que raramente se detém, durante a leitura, nas notas explicativas, principalmente quando abundantes e extensas. Esse tipo de produto editorial se destina a estudiosos, àqueles que já chegam ao documento com um grau maior de informação sobre o ideário explosivo ali contido. A maioria dos compradores da obra não vai ler todas as suas páginas, pescando coisas aqui e ali.
Além disso, há um aspecto econômico. Esse aparato crítico deve encarecer o livro, criando oportunidade para edições populares, que o dispensariam. Ou seja, podemos ter uma ou duas edições críticas, mas surgirão outras comuns. Como, então, universalizar uma orientação de leitura para o leitor desavisado?
Contrapropaganda
Recorrerei aqui a uma comparação que, talvez, possa causar algum estranhamento, mas que é didaticamente adequada pela sua contundência. Do ponto de vista médico, é inquestionável que as substâncias químicas do cigarro causam danos irreparáveis aos fumantes que se expõem longamente a elas. Esta certeza fez surgir entre nós uma legislação muito eficaz que normatizou a venda de cigarro, a sua propaganda e os locais de consumo. Entre todas as medidas de orientação, uma é particularmente forte. As fotos de pessoas com doenças relacionadas ao cigarro, ilustrando os malefícios do fumo.
Não estou querendo sugerir aqui que se exija a reprodução de cenas da atrocidade do nazismo na capa ou no miolo de “Minha Luta” – embora isso possa ser a opção de algum editor mais consciencioso. O que penso é que, em um período histórico em que as redes sociais permitem a manifestação de todos (o que, apesar do tom muitas vezes agressivo do grande burburinho eletrônico, é um avanço), faz-se necessário que o leitor seja informado que esta obra de Hitler traz afirmações, análises e julgamentos ofensivos e discriminatórios que incitam o ódio racial. Na sua capa, deve ficar dito que a reprodução de seus disparates está sujeita à punição judicial.
Que surjam várias edições de Minha Luta”, que mais gente conheça seus equívocos, mas que jamais qualquer leitor possa alegar desconhecimento de seu conteúdo criminoso.
* Miguel Sanches Neto é doutor pela Unicamp e professor-associado na Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Linguagem, Identidade e Subjetividade. Autor de mais de 30 livros, como os romances Chove sobre minha infância (Record), Um amor anarquista (Record) e A máquina de madeira (Companhia das Letras), traduzidos para o espanhol e para o francês. Recebeu, entre outros, o Prêmio Cruz e Sousa (2002) e Binacional das Artes e da Cultura Brasil-Argentina (2005). Acaba de lançar o romance de história alternativa “A Segunda Pátria” (Intrínseca), nascido da seguinte hipótese: e se Getúlio Vargas tivesse apoiado Hitler na Segunda Guerra Mundial?