O “Mein Kampf”, bíblia do mal nazi, volta a ser publicado na Alemanha

O III Reich não se distinguiu pelo seu amor aos livros, a avaliar pela quantidade deles que mandou queimar. Depredação terrível, mas nada original em termos históricos. Entre os precedentes célebres, terá havido o do califa que mandou destruir a Biblioteca de Alexandria por acreditar que só existia um livro indispensável, o Alcorão. Todos os outros eram maus porque ou o repetiam e nesse caso eram inúteis, ou o contradiziam e eram blasfemos. O regime hitleriano não chegou a tal ponto (afinal, a Alemanha era um país culto, com alguns dos maiores cientistas e pensadores do mundo, mesmo após a exclusão dos judeus), mas também ele achava que havia um livro supremo. Era o único de leitura indispensável a todos os partidários fiéis do regime, que aí encontrariam ao mesmo tempo uma explicação de história do seu país, uma exposição da ideologia que o podia salvar, e a narrativa de vida do potencial salvador. Esse livro intitulava-se “Mein Kampf”.

Foto D.R.

“Mein Kampf”, em português “A Minha Luta”, foi escrito em circunstâncias particulares. Em novembro de 1923, o antigo cabo Adolf Hitler, condecorado por valentia na I Guerra Mundial, liderou um golpe de Estado em Munique. O partido nacional-socialista, de que se tornara chefe, não aceitava a República democrática instaurada após a derrota na guerra e a abdicação do imperador Guilherme. As indemnizações que os vencedores obrigaram o país a pagar tinham gerado um caos económico e social que grupos extremistas de cores opostas aproveitavam. Os nazis culpavam da situação uma variedade de “traidores”, incluindo os judeus e os democratas. O objetivo do putsch de Munique era tomar o governo da Baviera e depois – imitando o que Benito Mussolini fizera um ano antes, com a sua famosa marcha sobre Roma à cabeça dos fascistas – seguir para Berlim e assumir o poder na Alemanha inteira.

Mau grado o empenho dos conspiradores, o golpe falhou. Muitos deles morreram, e os outros foram presos. Hitler ainda esteve escondido numa casa antes de a polícia o descobrir. Julgado no ano seguinte, foi condenado a cinco anos de cadeia, dos quais cumpriria nove meses. Durante a sua estadia na prisão de Lansberg, teve a ajuda dos guardas que simpatizavam com a sua causa e desfrutou de um estatuto especial, por exemplo recebendo visitas quase todos os dias. Aproveitou também para começar a escrever o “Mein Kampf”, ditando o texto ao seu secretário Rudolf Hess. Em parte autobiografia, em parte programa político, o livro fora encomendado por um editor que julgava ter um best-seller nas mãos. Infelizmente para ele e para o autor, não foi assim. O livro, publicado em dois volumes em 1925 e 1928, não foi inicialmente nenhum sucesso, embora as vendas aumentassem com a passagem dos anos e a popularidade crescente de Hitler.

Homem à deriva, ideias venenosas

O “Mein Kampf” abre com um relato dos primeiros anos de vida de Hitler, referindo o afortunado acaso que o fez nascer mesmo junto à fronteira entre a Alemanha e a Áustria; do seu pai funcionário e sua mãe doméstica; da recusa precoce em preparar-se para uma carreira na mesma profissão do seu pai; dos enfrentamentos a que isso deu origem; e da firmeza que já então o pequeno Adolf demonstrava. Fala também da sua atração pela guerra e por batalhas, logo na infância. À medida que a história prossegue, as ideias políticas vão surgindo e ganhando clareza. O pai de Hitler morre, ele sai de casa e vai para Viena tentar ser artista, mas não consegue, atravessando um período difícil em que anda mais ou menos à deriva na grande cidade. É a fase em que ele endurece a sua atitude contra os judeus (quando os via na rua, perguntava a si mesmo se eram alemães) e vai desenvolvendo sonhos épicos de glória, às vezes alimentados por óperas de Wagner a que o jovem indigente ia conseguindo assistir no teatro.

A declaração de guerra em 1914 salva-o dessa falta de rumo e dá-lhe um sentido de propósito. Mas os traumas do conflito e o resultado dele, tão amargo para a Alemanha, deixam-no inconformado. Como outros veteranos de guerra que se sentem abandonados quando esta chega ao fim – um exemplo recente é o núcleo original da Al Qaeda, formado por veteranos da guerra contra a Rússia no Afeganistão – torna-se um radical. “Mein Kampf” acompanha o seu envolvimento gradual na política, a sua ascensão largamente à conta do talento oratório (quando Hitler falava, os ouvintes acorriam, e os doadores também). Mostra igualmente o desenvolvimento das ideias que mais tarde lhe ficariam associadas, já bem presentes no livro: o imperativo de unificar a Alemanha, juntando-lhe a Áustria e outras zonas onde exista população alemã; o direito a alargar o Lebensraum, i.e. o espaço vital, avançando militarmente a Leste; o anti-comunismo intransigente; o racismo e anti-judaísmo ainda mais ferozes, por vezes com sugestões sinistras, como quando ele manifesta o desejo de que alguns judeus sejam gaseados, como ele e outros tinham sido durante a guerra, para ver se o destino da Alemanha melhorava…

Quando o partido venceu as eleições em 1933 e Hitler se instalou como Führer, “Mein Kampf”, então já popular, passou a vender-se em enormes quantidades

A última parte da obra é sobre o estabelecimento do movimento nazi. E foi o triunfo deste que, em última análise, a resgatou do esquecimento. Quando o partido venceu as eleições em 1933 e Hitler se instalou como Führer, “Mein Kampf”, então já popular, passou a vender-se em enormes quantidades, ultrapassando o milhão de exemplares por ano. Tornou-se praxe oferecer o livro em casamentos e outras ocasiões especiais, bem como aos soldados em zonas de combate. Os direitos de autor fariam de Hitler um homem rico e ter-lhe-iam proporcionado uma reforma confortável, se ele alguma vez a pudesse gozar. A derrota na guerra e o seu suicídio em abril de 1945, quando os russos já entravam em Berlim, foi também o começo de uma posteridade diferente para a obra.

Foto D.R.

Uma edição com 3700 notas de rodapé

No pós-guerra, a Alemanha ficou dividida em quatro zonas, cada uma sob o domínio de uma das potências vencedoras: EUA, URSS, Grã-Bretanha e França. Como a zona dos EUA incluía a Baviera e era lá que se situava a última residência de Hitler antes de subir ao poder, coube aos americanos decidir o que fazer com o livro maldito. A República Federal da Alemanha só seria criada quatro anos depois, e, assim, restou-lhes entregar os direitos de autor ao governo bávaro, que jamais autorizaria a republicação. Exemplares existentes nas bibliotecas ou em mãos privadas podiam ser lidos, circulados ou vendidos. Apesar da interdição geral de disseminar propaganda nazi, que se mantém hoje na lei alemã, o livro não estava expressamente proibido em si mesmo; aliás, continuou a ser editado noutros países, incluindo Portugal, ao longo das décadas seguintes. Mas legalmente não era possível lançar uma nova edição.

Apesar da interdição geral de disseminar propaganda nazi, que se mantém hoje na lei alemã, o livro não estava expressamente proibido em si mesmo

Em termos formais, a situação permaneceu a mesma durante 70 anos, embora a Alemanha tenha evoluído muito na sua forma de lidar com a infâmia nazi. Do silêncio inicial, passou à assunção de culpas e à discussão aberta. Além de pagar compensações aos povos que massacrou (parcialmente, conforme se constatou este ano quando a Grécia exigiu acertar contas e Berlim recusou), tornou um país exemplar em muitos aspetos: pacifista, próspero, empenhado no bem-estar social e na colaboração entre nações. A sua atitude durante a crise do euro ameaçou um pouco essa imagem, mas a posterior reação da chanceler Angela Merkel ao afluxo de refugiados à Europa voltou a mostrar o país no seu melhor, pelo menos para quem rejeita os desvios antidemocráticos e anti-humanitários em certos países europeus, sobretudo a Leste mas não só.

STRINGER

Novamente uma a partir de 1990, após a reunificação, a Alemanha de hoje nada tem a ver com a de Hitler. Nessas condições, parece razoável que o “Mein Kampf” possa voltar a ser editado, e até que seja estudado nas escolas. É a ideia do Instituto de História Contemporânea de Munique, que preparou uma edição nova, a ser lançada agora que os direitos de autor expiram de vez, setenta anos cumpridos sobre o final do ano em que o autor morreu. Com 3700 notas de rodapé, a nova edição visa dar todo o contexto histórico do que Hitler escreveu e desmontar as mentiras, meias verdades e verdades parciais que abundam no texto. Fala-se em impor o estudo dele pelos liceais a partir dos 16 anos. Obviamente, não houve como evitar polémica, mesmo entre os representantes judaicos de organizações judaicas em Berlim – para não falar de Israel. Há quem defenda que nenhuma eventual vantagem pedagógica pode compensar o mal que aquele texto venenoso faz sempre. Mas o dilema é o que é. Não sendo possível impedir a publicação da obra, mais vale acompanhá-la de tudo o que ajude a entendê-la como ela deve ser entendida. Afogando-a, por assim dizer, em conhecimento especializado…

Texto originalmente publicado na edição de 28 de dezembro do Expresso Diário

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