W. G. Sebald (1944-2001), autor maior, inclassificável, nasceu na Baviera mas abandonaria a Alemanha para se tornar professor de literatura alemã em Norwich, onde morreu num acidente de automóvel aos 57 anos. Publicou vários ensaios, um romance, Austerlitz, e muitos textos que não são propriamente romances (Os Anéis de Saturno, Os Emigrantes e Vertigo) — há uma espécie de epistemologia sebaldiana, um modo único de aflorar o mundo e de o (trans)escrever sempre em perda. Campo Santo, editado em 2003, reúne textos sobre autores insistentes em Sebald (Kafka, Nabokov. Amery, Weiss e outros), assim como artigos trazidos de uma viagem à Córsega (emblema do seu modo de compilar e agregar traços soltos do mundo palmilhando geografias) e ainda páginas polémicas sobre a Alemanha do pós-guerra e a sua produção literária, a da literatura da destruição, que se escreveu (ou não) nos escombros de cidades arrasadas pelos bombardeamentos da aviação aliada.
A primeira parte nasce de uma viagem de duas semanas à Córsega. Sebald visita uma cidade de que nada sabia a não ser ter sido o lugar onde o imperador Napoleão veio ao mundo. Napoleão, o ditador esclarecido, é de resto a pedra de toque de peripécias díspares que não tornam a narrativa cumulativa nem organizam o tempo cronologicamente. Pelo contrário. o autor detestava sujeitar as suas obras ficcionais à engrenagem do romance. O passado não é um curso que termine num desfecho, mas um ponto de partida sempre latente, de onde se vê e se sente e se escreve, fantasmaticamente, debaixo da sombra que não cessa de assombrar, de destituir do presente a identidade e a presença. A memória é episódica e cada episódio inclui o peso de uma memória inapagável, como um espectro. Tudo é filtrado por ela e pela morte. Nenhum ponto de vista se lhes subtrai e daí resulta uma inefável melancolia, o laço de Saturno. Esse véu que turva a inocência e a visão nasce do que resiste a apagar-se da Segunda Guerra Mundial, permanecendo como herança mesmo para os que ainda não nasceram ou para os que estão já mortos — as vítimas das guerras, dos extermínios nacionalistas, racistas, colonialistas, das opressões do capitalismo, de todas as formas de totalitarismo. A escrita deste autor exilado mas intimamente alemão agrega reminiscências autobiográficas, História colectiva e ficção: “Só a literatura pode fazer a História”.
Campo Santo começa portanto por trazer a deambulação do escritor por Ajácio, de bloco de notas e lápis na mão, percorrendo ruas e ruelas como um flâneur, sondando, coleccionando, à maneira de Walter Benjamin, fragmentos disjuntos e anacrónicos sujeitos a uma montagem sem hierarquia — e arrastando sempre consigo os outros com os quais vê, através dos quais sente (Flaubert é um exemplo, também ele esteve ali, e “era como se nem uma hora tivesse passado desde então”, menos num detalhe). Sebald vê com os mortos, com um marulhar de memórias que faz do pela primeira vez visto algo que se conhece de um qualquer passado. Da Córsega, o autor traz ainda memoria de rituais funerários muito antigos, em que os “mortos estavam por assim dizer em casa, não eram mandados para o exílio”. Ainda da ilha, olhos esbugalhados de terror, Sebald descreve a degradação e o recuo, camada após camada, da floresta, o desaparecimento das espécies raras, sobreviventes antiquíssimas, a lenta extinção do vegetal endógeno nas cercanias “do que chamamos berço da nossa civilização”. Tudo parece ser uma imensa alegoria do Holocausto.
Do conjunto de artigos compilados, um sobressai, pelo seu tom implacável e pelas vozes que inflamou aquando da sua apresentação em Zurique — Entre História e História Natural. Sobre a descrição literária da destruição total. Quer dizer, o arrasamento das cidades alemãs realizada pelos aviões da Royal Air Force. Começa assim: “Até hoje nenhuma explicação adequada do motivo por que a destruição das cidades alemãs no fim da Segunda Guerra Mundial, com poucas excepções que confirmam a regra, serviu alguma vez de tema para descrições literárias, na época ou mais tarde, embora esse problema reconhecidamente complexo pudesse fornecer conclusões significativas sobre a função da literatura.”
Curiosamente, no fim de 1945, Alfred Döblin, citado por Sebald, diz que os homens circulavam nas ruas, entre ruínas medonhas, “como se não se tivesse passado nada (…), como se a cidade tivesse estado sempre naquele estado” — a sociedade recalcara o passado nacional (a Shoah e a destruição material e humana de um pais vencido). A partir dos anos 60, a vitória da social-democracia e do capitalismo alemão prosperante edificou a indiferença ética. Alguns escritores do pós-guerra são apontados como excepções: Nossack, por exemplo, emblematiza o difícil denominador comum entre o júbilo da libertação e a destruição, o culpado sentimento de felicidade que assalta o sobrevivente na viagem pela cidade morta. A sua diferença reside também no facto de ter “tentado compreender as categorias do luto a partir dos precedentes da tragédia grega, posição inspirada pela personagem de Hamlet e a sua vontade obstinada de assumir uma memória monstruosa”. Outros sobreviventes reflectem sobre a destruição e a culpa: Canetti, Peter Weiss e W. Hildesheimer, nomeadamente. Mas esses são judeus.