A solidariedade é assim. Na Alemanha, desde Junho que uma escola da Baviera aconselha as alunas a vestir “modestamente”, leia-se a taparem-se inteirinhas para não ofender as centenas de refugiados muçulmanos alojados nas imediações. Na Grécia, refugiados muçulmanos recusaram ajuda da Cruz Vermelha, supõe-se que por causa da iconografia. Em Portugal, o município de Penela prepara-se para acolher refugiados muçulmanos e providenciar-lhes aulas de português com separação de sexos. E parecem-me evidentes os motivos que levam centenas de refugiados muçulmanos a fugir da ilha de Lesbos. Os refugiados, não sei se o referi, são na maioria muçulmanos, característica associada a numerosos preceitos comportamentais que nós, em nome da hospitalidade e boas maneiras, devemos respeitar.
A existir a séria possibilidade de uma família alargada de iraquianos acabar cá em casa ou na vizinhança, estou empenhado em evitar ofensas gratuitas. Ou até pagas. É verdade que não possuo o espírito magnânimo de Raquel Varela, a historiadora/comunista/activista que posou para o Facebook com um cartaz a dizer “Refugees Welcome” e agora tem o conforto do lar incrementado graças à presença de quatro sírios sortidos, dois casais líbios e um paraguaio exilado por dormir com uma chinchila. Porém, basta notar a quantidade de infelizes que fogem do Médio Oriente e dividi-la pela dimensão do território europeu para concluir que é matematicamente impossível um ou oito refugiados não me caírem em cima.
À cautela, adoptando o preceito popular segundo o qual é melhor prevenir do que ter um afegão furioso a perseguir-nos na cozinha, há regras de hospedagem a cumprir. A minha mulher começou a andar embrulhada num lençol da cabeça aos pés (enquanto não chega a remessa de bonitas burkas encomendadas online). O fiambre e os enchidos foram para o lixo, e só não foram para os cães porque estes, sendo considerados demoníacos pelos seguidores de Alá, também foram para o lixo. No que toca a livros, já despachei os que tratavam do Holocausto, os que incluíam referências simpáticas sobre Israel, os EUA e as democracias em geral, os que padeciam de licenciosidade em matéria de costumes e três romances de Michel Houellebecq (neste momento, a minha biblioteca resume-se a dezassete fascículos da Teleculinária e Doçaria, com as páginas alusivas às costeletas de porco devidamente excisadas). Os canais televisivos estão bloqueados em peso, com as naturais excepções da Al Jazeera e da SIC Notícias. Por falta de paciência para catar blasfémias, doei todos os DVD ao ecocentro local. Por fim, aboli a expressão “Cruzes, credo” e enterrei uma garrafa de aguardente velha Ferreirinha.
Em suma, decidi facilitar a vida aos refugiados, para que estes possam regressar a cada fim de tarde da limpeza das matas e encontrar um ambiente compatível, não com os decadentes horrores do Ocidente, mas com a fé e a cultura que tanta alegria lhes têm dado. Se eles não fariam o mesmo por mim, seria obviamente para o meu bem. Bem-vindos, pois.
O BOM
A esquerda despida…
…jamais será unida. Uma dirigente do popular movimento AGIR decidiu, cito, homenagear todas as grávidas que passam dificuldades no país e, naturalmente, surgiu em pelota numa revista da especialidade. Um colega de partido acusou-a de desviar as atenções da austeridade (para mim, de resto, denunciada na falta de roupa). Um ex-colega chamou-lhe bêbada. Uma ex-colega chamou-lhe oportunista. Mas o importante é que as esquerdas continuam a unir-se como se não houvesse amanhã. Se tudo correr bem, não haverá.
O MAU
Uma voz que não se cala
Indignado com a prisão de José Sócrates, Garcia Pereira garante que a justiça “está ao serviço da extrema-direita”. À primeira vista, fica a ideia de que os juízes servem apenas o PNR. À segunda vista, percebe-se que a “extrema-direita” em causa é em sentido lato, e que a pérfida justiça que a beneficia é a que deixa os poderosos impunes e castiga ex-governantes, autarcas e banqueiros. Mas estes oprimidos têm em Garcia Pereira uma voz, e uma voz incómoda – em sentido estrito.
O VILÃO
O capitalismo e os selvagens
E anda um sujeito a manter o táxi num estado de higiene deplorável para poder cobrar quantias exorbitantes e às vezes fraudulentas aos clientes que passam a viagem inteira a hesitar entre rezar para não terem o acidente que a condução promete ou preferir a morte a ouvir as rádios e as conversas que os choferes de praça escolhem – e depois aparece a Uber a estragar tudo. A concorrência é muito bonita, desde que regulamentada e, se necessário, controlada ao tabefe.