“Mein Kampf†. O livro que disse ao mundo o mal que lhe ia fazer


O livro que disse ao mundo o mal que lhe ia fazer (mas, porque era chato, o mundo não quis ler).

Ditado na prisão, ler este livro é como ouvir o próprio Hitler longamente a falar da sua juventude, do partido nazi e dos seus planos para a Alemanha.

A danação histórica que envolve a suástica não foi tão longe que magoasse um dos símbolos da cultura humana ao longo dos tempos. Embora os detalhes no seu desenho variem, o que esta cruz tem de especial é ter tantas origens. Foi encontrada em diversas tradições sem contacto entre si: é um dos amuletos mais antigos e universais, remontando ao Neolítico. O homem sempre representou o sol, e esta é uma das suas marcas, associada ao nascimento e renascimento. No Oriente permanece viva, evocando a sorte e o sucesso, surge em templos e santuários. Na Índia, muitas cerimónias, festivais, celebrações, casamentos são abençoados por ela. 

Não é nada de novo. Mas é curioso como as palavras que Adolf Hitler começou por ditar a Rudolf Hess enquanto fazia quilómetros a passear, no exíguo espaço da sua cela na prisão, entre 1923 e o ano seguinte, bem como mais tarde o fez num quarto de uma pensão em Berchtesgaden, renasceram para uma segunda vida neste mesmo país. “Mein Kampf”, o livro de dois tomos em que o futuro Führer anunciava ao mundo as suas intenções, é hoje muito popular na Índia, especialmente entre os políticos com inclinações hindu-nacionalistas.

“É considerado um livro de auto-ajuda muito significativo”, explicou à BBC Atrayee Sen, professor de Religião Contemporânea na Universidade de Manchester. E notou que, se “se afastar o elemento de anti-semitismo, é um livro sobre um pequeno homem encarcerado que sonhava conquistar o mundo e que estabeleceu um plano para o fazer”. Entre as sombras de que se ergue e aquelas que projectou, persistem muitas até aos dias de hoje. É fácil sugerir como as suas implicações o elevam à condição da obra maldita por excelência, o livro mais controverso de sempre. 

Nesta autobiografia que se socorre do estilo do Bildungsroman – o célebre “romance de formação”, distribuindo entre os capítulos iniciais as fases do desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, neste caso, o próprio autor –, Hitler esboça a sua visão do mundo e o seu raciocínio político recorrendo ao preconceito e ao ódio para representar um inimigo absoluto: o judeu. Dessa figura que representava a ameaça às aspirações da raça ariana (pura, virtuosa, etc.), forjou uma identidade dando força à noção de que há na fragilidade humana um génio vingativo e que um dos vínculos mais fortes entre os homens pode vir de algo tão simples como essa popular expressão: o inimigo do meu inimigo é meu amigo.

Preso por traição após o Putsch de Munique – tentativa falhada de golpe contra o governo da Baviera –, Hitler recebia visitas, manteve-se activo, tornou-se uma espécie de mártir e os seus partidários conseguiram fazer elevar o seu caso a uma causa e levar as autoridades a estenderem-lhe um perdão. Se o editor não tivesse intervindo, a ideia de Hitler era chamar ao livro “Quatro Anos e Meio de Luta contra Mentiras, Estupidez e Covardia”. Foi publicado em 1925 e não vendeu mais que umas centenas de exemplares. O público esperava uma autobiografia que revelasse os detalhes sensacionalistas quanto ao que se passou nos bastidores do Putsch, mas o que surgiu nos escaparates foram dois calhamaços, mais de 700 páginas ao todo, com frases intermináveis, parágrafos que não vão a lado nenhum, uma prosa tortuosa de um orgulhoso autodidacta.

Fora parido um rato, mas a montanha ainda estava por vir. Contudo, e apesar da omnipresença que estes volumes assumiram uma década mais tarde, durante o Terceiro Reich – com mais de 12 milhões de exemplares em circulação, muitos oferecidos como presentes de casamento, às vezes em edições de luxo, em folha de ouro –, “Mein Kampf” é a tal ponto cansativo que se torna ilegível, o que explica que a maioria dos alemães se tivesse ficado pelos resumos, que servem igualmente a muitos estudantes para contornarem os clássicos calhamaços da literatura.

É um livro de uma insuportável eloquência, cheio de afirmações bombásticas que não chegam a entretecer uma tese minimamente razoável, mas que não deixa de se debruçar em minúcias históricas, num emaranhado de noções ideológicas e num resultado de tal modo canhestro que ainda hoje tanto os historiadores como os neonazis tendem a evitá-lo. No fundo, o tijolo que vende milhares de exemplares todos os anos em inúmeras traduções tornou-se mais um símbolo do que propriamente uma obra influente ao nível da capacidade de persuasão. 

Ironicamente, e em retrospectiva, o que se pode dizer sobre o virulento manifesto político de Hitler é que, se a sua prosa tivesse influências menos panfletárias e mais literárias, talvez o mundo o tivesse lido e levado em conta a ameaça daquelas linhas. 

Linhas pelas quais o mundo podia ter vislumbrado o inferno que o “pequeno homem” lhe propunha. É dos comentários que mais vezes, em retrospectiva, o livro mereceu: se, ao menos, então o mundo o tivesse lido… Depois de capítulos iniciais como “Na Casa dos Meus Pais” e “Anos de Estudo e Sofrimento em Viena”, Hitler lança-se numa síntese de uma série de ideias racistas, começando a delinear as estruturas e a organização prática que tinha em mente para o movimento nazi.
Como se sabe, no caso deste pintor frustrado, vegetariano com problemas de flatulência crónica, a falta de um talento artístico foi sempre um drama pessoal que acabou por virar a sua paixão para um tipo de carisma violento que o tornou popular, produzindo um drama à escala humana. 

Quanto ao fenómeno que viu o livro assumir um especial estatuto entre o género hoje tão em voga da auto-ajuda, esse tem sido um dos factores por trás do receio de que o futuro minimize o contexto em que “Mein Kampf” surgiu. Desde o fim da ocupação de Munique, os direitos sobre o livro foram detidos pelo estado da Baviera, que impediu a sua reedição na Alemanha. 

Passaram-se 70 anos e o problema é que, à semelhança do que acontece por cá, a lei alemã estabelece que, findo esse período, a obra entra em domínio público. Isto significa que, a não ser que um tribunal decida abrir uma excepção, no dia 1 de Janeiro de 2016, qualquer pessoa poderá publicar o livro. 

Tem havido um intenso debate sobre o tema e há quem defenda que o livro deve continuar proibido. Outros dizem que, se o livro está acessível, o melhor é disponibilizar também uma interpretação responsável e historicamente correcta dele. E há depois aqueles que não estão tão preocupados e sugerem que as toscas divagações de Hitler são o melhor instrumento para ridicularizar as suas ideias.

Por outro lado, os 70 anos não foram o suficiente para erradicar os milhões de exemplares impressos durante o período nazi, e hoje resistem centenas de milhares na Alemanha, não sendo muito difícil encontrá-lo em alfarrabistas, além de estar disponível na internet. 

Entretanto, o governo da Baviera chegou a patrocinar com meio milhão de euros uma edição crítica do livro, um volume em que os historiadores comentam de forma meticulosa a idiotice, a incoerência e as inúmeras omissões e falsidades sobre as quais “Mein Kampf” foi arquitectado.

Entretanto, e depois de uma reunião com sobreviventes do Holocausto, a Baviera decidiu retirar o financiamento ao projecto, adiantando que não irá publicar a edição crítica nem nenhuma outra do livro. “É uma obra que levou ao assassinato e perseguição de milhões de pessoas”, lembrou Ludwi Unger, o porta-voz do Ministério da Educação e da Ciência da Baviera, justificando a mudança de planos.

O mais provável é que o debate se intensifique até 2016, e talvez não arrefeça depois. Quanto ao livro, tenha ou não futuro nas secções de auto-ajuda, se politicamente não foi decisivo em 1925, é difícil que o seja algum dia. Esta semana falamos de obras malditas, banidas ou polémicas, e a grande questão mantém-se desde sempre, já tendo sido formulada pelo poeta polaco Zbigniew Herbert em referência à magna tragédia de Shakespeare, “Hamlet”: “Palavras, o que podem elas fazer, príncipe?”

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